quarta-feira, 7 de abril de 2010

Uma história sobre mosquitos

A minha professora de piano morreria de cancro alguns anos depois.

As minhas mãos suavam e esfarelavam as beiras da partitura fotocopiada. Eu esperava apenas a minha subida ao palco para mais uma audicão de fim de ano e só pensava no quanto odiava aquela merda toda. Eu tinha perfeita consciência da minha falta de talento. Mas pior, era o talento alheio. Como por exemplo o do fulano que tinham posto dessa vez a tocar antes de mim. Tocava divinamente. Quase o podia odiar. Mas ali, entrincheirado na entrada dos bastidores, só via a grande tampa negra do piano e as pernas dele. O pé que carregava elegantemente no pedal. E ponderava se alguma vez teria a coragem de lhe baixar as calças na casa de banho do teatro. A imaginação ajudava-me  a controlar o pânico. Eu não nasci para a música.
  
Isto veio-me à memória a propósito de um mosquito. Deitado, nu, com o meu amante, um mosquito que nos sobrevoa lembrou-me a minha professora de piano. A que morreu de cancro, soube eu anos depois.
  
A maior parte das vezes, por muito que gostemos das pessoas, elas têm na nossa vida apenas o papel de figurantes. Se tudo o que sobra é uma anedota, como no caso da minha professora de piano, já não é mau. Tive dois anos de aulas com ela, duas vezes por semana e o que resta disso é uma história sobre mosquitos.

Era de noite, estávamos nus na cama desfeita e quando o mosquito nos sobrevoou a baixa altitude e se pôs em manobras kamikaze que terminaram com ele desfeito entre uma almofada e a parede, eu lembrei-me dela.
  
Eu tocava pela ultima vez na aula a peça que ia interpretar em público quando um mosquito entrou pela janela e pousou na minha mão. Resisti estóicamente  durante algum tempo, mas é claro que a minha atencão se desviou de Bach para aquela criatura preparada  para me ferrar.
  
A minha professora assistia impassível e com um sorriso triste. Principalmente lembro-me desse sorriso. Era o resumo da história toda.
  
Quando a tortura acabou — eu afugentando o mosquito e interrompendo também a tortura que infligia a Bach — ela disse:
  
"Uma vez na Roménia, fomos requisitados como quarteto para tocar para os trabalhadores. Era servico cívico e não podiamos deixar de ir. Era suposto tocarmos enquanto as pessoas que trabalhavam no campo paravam para almoçar. Então lá estávamos nós num estradozinho, rodeados por camponeses que nunca sequer deviam ter visto um piano. O problema era que o sítio ficava mesmo ao lado de um pântanal e enquanto nós tocávamos havia umas melgas enormes, daquelas  de patas grandes, nojentas, sabes quais são? que nos mordiam todos e nós não podiamos parar de tocar. Saímos de lá todos inchados com umas babas enormes."
  
Rimo-nos.
  
"Percebes porque é que esse mosquito é insignificante? Tu hoje podes parar. Nós não podiamos."

E depois:
  
"Um músico não pára."
  
Foi a única vez que eu soube alguma coisa da vida dela. Eu até me esqueceria que ela era romena, não fosse o sotaque divertido. Morreu alguns anos depois e esta é a única coisa que soube da sua vida. E das aulas de piano, já me esqueci.
  
Um silêncio ficou a pairar entre nós, nus. Na escuridão eu estava ainda mais consciente do calor do corpo dele. Quando ele prestava atencão às minhas histórias eu amava-o ainda mais.


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