segunda-feira, 15 de março de 2010

Dele

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Agora, quando viras a esquina pensas nele. 

Esta rua vai ser sempre a rua dele. Começa com casas baixas, dois ou três andares. Lá mais para o fundo há prédios altos. A calçada está partida aqui e ali. O asfalto tem buracos. Passa um autocarro a cada dez minutos. Não é bonita, mas é dele.

A primeira vez que o viste ele estava ali, perto daquela porta verde. Disse depois que tinha marcado ali para ser discreto. Aquela não era a porta dele. Mas sorriu quando te viu e isso importa mais que a porta. E tu sorriste de volta, como um espelho, espantado pela beleza. Aquela barba, aqueles olhos. Oh deus, a sorte!

Quando te estendeu a mão estendeste-lhe a tua, reflexo imediato, e logo aquela pele. Que quente a pele dele, que intenso, o primeiro toque do dia. (Não contam os apertos do metro para chegar ali.)

Dali seguiram para lá, para a casa dele, num daqueles prédios.

- Então?…

- Pois… e o tempo?

Falaram de nada. Seguiram lado a lado, mal se olhando.

Agora só, seguindo a rua, reparas nas lojas, reparas nos pássaros, notas o brilho de uma janela limpa. O cartaz da peça. O cartaz da ópera. E as eleições e as actividades da junta.

Hoje há mais sol, naquele dia sabe deus o que havia. Havia tusa. Havia já, tu suspeitas, uma espécie de amor.

Que pensaste dele? Oh sim, que era lindo, mas mais que isso. Tentaste imaginar como é alguém que mora nesta rua. Esta rua é dele. Sorris para dentro de ti.

Agora sabes ainda melhor que ele pertence aqui, que te pertence a ti.

Tiras a chave do bolso. É esta a porta, é esta aqui. A tua porta, da tua casa, na tua rua.

Agora és dele. Moras aqui.

Sorris.


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Faltas

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Tão longe quanto a saudade alcança estavas,
a uma distância maior que a de uma carta.
Nada do que possamos dizer interessa,
não são palavras, a vida. A vida não é feita de cartas.
... embora agora, por aqui, pareça feita de faltas.


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terça-feira, 9 de março de 2010

Quando me basto






Há dias em que me basto, em que me tenho a mim.
Nada dói, nada falha, nada falta.
Os dias bons não são assim.


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sábado, 6 de março de 2010

O teu corpo é barro








Agarro-te e o teu corpo é barro.
Soubesse eu melhor a tua forma e seria arte este amor.




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Outono






Um peso que se ergue, se abre e começa a espalhar.
Mais que um cheiro no ar da cidade, és Outono.
Que outro peso podia voar?

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Conselho






Morde tudo o que te aparecer pela frente
usa tudo como alimento.
As palavras não alimentam,
come a vida e os sentimentos.

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Soma


Agora tudo se explica numa linguagem de gestos.
Soma-se a minha pele à tua e o meu riso ao teu.

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Nós, as montanhas.


A nossa sombra. O teu corpo, agora meu.
Erguemo-nos como montanhas.
Sairemos da noite, brilhando.
Somos agora relevo no horizonte.


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Tríptico







Amadora




Hinos juvenis em tons amargos.
Suburbios desertos, metálicos.
Vida carregada aos ombros
e sexo vazio enchendo o nada.

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Olhos de cão


1.
Olhos de cão. 
Encostado à parede, aos ladrilhos, olhos de cão olha e os seus olhos, castanhos, de cão, olham como olham os cães. 
De mãos nos bolsos, cabeça encostada à parede, pés no chão. 
No reflexo do vidro, olhos de cão. 
O manear da cabeça como um animal. No chão, as patas largas. 
Nós juntos e eu sózinho.


2.
Olhos de cão não anda em casa, anda pelas ruas cheirando as portas das casas dos outros. 
Não sabe parar, olhos de cão, não sabe sequer ladrar. 
Corre sem dono e não consegue parar.


3.
Olhos de cão, despenteado, mais solitário que nunca, tentando apagar a solidão, estendendo o pêlo a festas. Hoje é cão vadio, vindo da rua. 
Nem sabe que a chuva de que foge nos molha a todos. 
Cão, vadio. És tu, olhos de cão.


4.
Olhos de cão, triste, também. 
Não é só quando o sol te brilha nos olhos, é quando uivas à lua que te mostras. 
Cão estúpido e rafeiro, sem raça, de pêlo àspero e feio. Nem sabes que o mundo é teu.


5.
Os dias de sol são teus, olhos de cão. 
Saem-te pela cara e pelos braços, pelos pés cansados. 
Estão dentro de ti e saem-te pelos olhos, olhos de cão. 
A beleza, a ti, entra-te pelos olhos adentro e depois brilha fora como o sol. 
Tudo o que existe é teu, e tu nem sabes, olhos de cão. 
Que o mundo não tem montanhas para quem é cão. Para quem se sente cão. Para quem morde como cão, a vida.

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As últimas casas





Mataste a sede e o corpo caiu-te por certo na estrada.
Moravas nem sabes onde, passaste as últimas casas.

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Pastor de pedras





Eras pastor de pedras e penedos 
que te seguiam fiéis por toda a parte.
Levavas contigo terras altas 
e vales que te acompanhavam. 
Os rios eram teus amigos 
porque lhes trazias 
quedas d’água.
Também eu te queria, amigo, 
e no meu solo plantava mágoa 
porque as pedras andavam contigo 
e do pó colhia eu nada.


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