sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Feliz - 7 (fim)

Carlos não dorme. Um segredo para existir tem de ser partilhado com alguém. Coisas que não se contam não existem e a cena da casa de banho foi demasiado intensa para que a remeta para o esquecimento. Tenta pensar em alguém a quem possa contar o episódio, o encontro imediato com o rapaz do desodorizante, como lhe chama na sua cabeça. É aí que faz também uma lista de nomes e não se lembra de ninguém a quem possa contar uma coisa destas. Paulo, que dorme ao seu lado, é ainda o seu melhor amigo, o mais íntimo, mas o casamento tem regras. Para os outros a mesma coisa. Carlos passou a ser uma parte da entidade Carlos+Paulo. 2 que passaram a ser 1.
É a primeira vez que se apercebe do sucesso da união, de como todos os amigos de Carlos são primeiro que tudo amigos de Carlos+Paulo e que não é possível minar essa entidade com 1 segredo que pede uma divisão, uma tomada de partido.
Depois de 5 anos de casamento, Carlos repara que está de novo sózinho, com 1 segredo fechado dentro de si que não se atreve a deixar sair. E, em vez de ser incómodo, é apenas uma sensação familiar, um regresso ao tempo em que tudo era anónimo e nada se partilhava. Até há 5 anos atrás ele vivia assim... e conseguia ser, lembra-se, apesar de tudo, relativamente feliz.
A seu lado, Paulo dorme. Ele permanece acordado. O seu truque para adormecer é contar em ordem decrescente. Faz isso desde a escola primária. Quando a mente se lhe complica recorre aos números. E números às avessas são ainda mais abstractos.
Começa com o 9. Depois o 8.
E depois põe-se a comparar a sua felicidade e satisfação pessoal com a de outras pessoas: a de Cláudia, 7, a de Marcos e Celeste, 6, a do sorridente senhor Li do restaurante da esquina, 5, a do hermafrodita amigo do amigo do Paulo, 4, a das pessoas dentro dos carros nos engarrafamentos, 3, a dos refugiados palestinianos, 2, a das crianças a morrer de fome em África...
Mas a felicidade não se pode prender num número que permita depois fazer contas, estatísticas, comparações. Por isso, antes de concluir alguma coisa, adormece.
É então que se sente a flutuar, a subir como se, por simples vontade, se libertasse da gravidade. Olha para baixo e vê-se a si próprio deitado, dormindo, abraçado a Paulo. 2 feitos 1.
Sente agora as costas contra o tecto do quarto, o que lhe impede a ascenção descontrolada que começou por sentir. Tem pena de não subir mais. Sabe que lá fora o céu está cheio de estrelas, incontáveis, mas deixa-se ficar ali, satisfeito, talvez até feliz, a sonhar aquele abraço até a sua consciência se anular e o sono se tornar finalmente simples, total, negro e profundo.

Feliz - 6

Carlos regressa quando o filme já acabou. Paulo, Celeste e Marcos esperam por ele já fora da sala. Todos lamentam que ele tenha perdido o fim do filme. Sim, mas teve de ser, diz ele, diarreia.
Ai, coitadinho, compadece-se a Celeste, e começa a contar a história da sua tia que durante anos sofreu de prisão de ventre até ao dia em que resolveu começar a beber água da torneira, o que lhe dava uma diarreias monumentais, mas aliviava bastante.
No carro, a caminho de casa, Carlos pode manter-se em silêncio enquanto Paulo lhe conta o resto do filme, mas, embora muito mais interessante do que a história de Celeste, ele não presta atenção. De todos os pensamentos que o atravessam, o mais notável é o que não tem. Sente-se completamente isento de culpa. Olha para Paulo e percebe que nada mudou, nem sequer o seu amor por ele. O que se passou na casa de banho parece parte do filme, não alterou nada na sua vida.
Outro sentimento que vem a seguir é uma sensação de liberdade, como se um peso se tivesse levantado de cima dele. Um peso que ele nem se tinha apercebido que existia.
Em casa estão ambos de excelente humor. Paulo diz que gostou do filme. Faz graças. Beija Carlos. Carlos responde. Fazem amor ali mesmo no chão da sala com uma intensidade inédita nos ultimos anos.
Depois já na cama, deitados a olhar o tecto, Paulo diz, temos de fazer isto mais vezes. Carlos concorda.

Feliz - 5

Nessa mesma Sexta-feira, na cama, depois de Paulo finalmente se ter vindo, Carlos, atrás da orelha dele, pergunta: Vamos ao cinema no Domingo? Só nós os 2?
Temos de ir?
Eu quero ir.
Tem mesmo de ser?
Não tem mesmo de ser, mas eu é que preciso de ver outro filme que não seja ”O Rei Leão”… e além disso nós já não vamos ver um filme como deve ser há séculos.
Que filme é que queres ir ver?
Não sei como é que se chama. É um filme gay chinês que está no King. O Vitor e o João dizem que é bom.
Paulo desenlaça-se dos braços de Carlos, pega na toalha ao lado da cama e limpa-se.
Tenho uma reunião com um cliente na Segunda de manhã… mas se queres mesmo ir, pode ser….
Então vamos.
Carlos acaba a conversa por ali porque sabe que é a melhor maneira de conseguir o que quer. Se regatear vai ser ele a ceder. Levanta os lençóis e deixa Paulo voltar para a cama e para os seus braços. Ficam abraçados em silêncio durante algum tempo. Respiram o cheiro um do outro. Quase adormecem. Voltam a acordar quando os membros reclamam do peso e da tensão. Separam-se. Ajeitam--se na cama. Carlos beija as costas de Paulo. Paulo diz: Boa noite, pudinzinho. Carlos diz: Boa noite, coisa fofa.
Dormem.
Chegam tarde ao cinema. Carlos está ligeiramente irritado. Atrasaram-se porque Paulo se lembrou de convidar o Marcos e a Celeste para irem com eles ao cinema.
Marcos trabalha como contabilista para a firma de Paulo. Carlos e Paulo acham-no simpático e têm pena dele por ser casado com Celeste.
Celeste é cabeleireira e adoooooora o Paulinho e o Carlinhos, como lhes chama. Carlos e Paulo sabem que ela gosta de ser dar com eles porque é ”moderno” ter amigos “assim”. Carlos já desistiu há muito tempo de se esforçar para ter uma conversa com ela.
Marcos por seu lado é ”uma pequena jóia de sensibilidade perdida num antro de mesquinha burguesia capitalista suburbana”. Foi assim que Paulo o definiu logo depois de o contratar há 1 ano atrás. Paulo está além disso muito grato a Marcos por ter salvo as contas da firma e ajudar Carlos com os impostos.
Carlos insiste que gratidão não é desculpa para aturar ”a vaca da Celeste que só se dá com a gente porque sabe o nosso rendimento anual”. Outro motivo para Carlos se sentir irritado é ”a vaca da Celeste” levar 2 séculos a pentear-se, ou melhor, a pôr o cabelo em pé, o que os fez chegar tarde ao cinema e já só arranjar lugares laterais numa fila da frente. Paulo responde que podia ser pior, que a Celeste podia ter ficado à frente deles. Carlos não consegue deixar de rir.
Paulo poderia fazer ainda mais alguns comentários divertidos sobre a Celeste, mas para isso teria de contar a Carlos a relação que mantém com Marcos, ou mais exactamente as fodas que dão na mesa do escritório quando os outros se vão embora e eles ainda ficam a verificar as contas da firma.
Carlos e Paulo descem da bilheteira para a livraria do cinema onde Marcos e Celeste os esperam. Enquanto a atravessam para chegar à sala de cinema ainda têm tempo para olhar para os livros. Carlos olha a secção de poesia. Paulo e Marcos discutem os videos, quais os filmes que viram e os que queriam ver e não viram. Celeste pergunta na caixa se não têm uma secção de revistas.
O filme é chinês e artístico. 1/2 hora depois de ter começado já Celeste desistiu de tentar perceber o que se está a passar. Mas conclui que vale a pena estar a aturar beijoquices entre 2 gajos para depois poder comentar o assunto lá no salão, afinal ela é a mais moderna das cabeleireiras, a que vai ver filmes estrangeiros a Lisboa e que tem amigos gay.
Paulo, por seu lado, entrega-se ao filme de alma e coração. Emociona-se com a história e aprecia o excelente trabalho de fotografia e montagem. Elege também 1 dos rapazitos como seu favorito e entretém-se a passear-lhe os olhos pelo corpo quando ele está em cena.
Marcos está indeciso sobre se gosta do filme ou não, mas algumas cenas dão-lhe imensa tesão. Pensa nas quecas que dá com Paulo, que são o melhor sexo que alguma vez teve. Sente-se um pouco incomodado pelas cenas comoventes e pensa em apertar a mão de Celeste mas isso não é um acto muito normal entre eles e ia ser suspeito, por isso fica quieto e finge que não se passa nada. Sente-se um bocadinho chateado por Paulo os ter convidado para ver um filme tão paneleiramente lamechas.
Carlos não se consegue concentrar. Ainda está zangado por terem lugares tão maus e além disso, ao seu lado, está uma rapariga que mastiga uma pastilha elástica de um modo extremamente irritante. Depois dá-lhe vontade de mijar. Tenta aguentar o melhor que pode, mas passado algum tempo conclui que se não sair imediatamente vai acontecer um acidente desagradável. Sussurra a Paulo o que tem de fazer e tenta sair o mais discretamente possível da sala, o que significa, de um modo ou outro, perturbar toda a gente.
Sai para os corredores e escadas vazias do cinema e desce até à livraria, ao lado da qual ficam as casas de banho. Aí estão algumas pessoas, certamente a fazer tempo para a última sessão do cinema. Uma delas levanta os olhos de um livro quando ele passa. É o tipo da paragem do autocarro. O coração pula-lhe no peito. Desvia os olhos imediatamente e apressa-se para a casa de banho. Em frente ao urinol não tem tempo para nada, nem sequer para pensar. Faz o que tem a fazer. Só quando puxa o fecho das calças para cima é que pensa no tipo e no que ele estará a fazer ali.
Depois, no momento em que abre a torneira para lavar as mãos, a porta da casa de banho abre-se e o tipo entra. Fica ali a olhar para ele. Os olhares cruzam-se no espelho.
Carlos entra em pânico e, o mais rapidamente que pode, fecha a torneira e vira-se para sair sem sequer pensar em secar as mãos. Mas o outro bloqueia-lhe a passagem e ele vê-se forçado levantar o olhar para ele. Mais depressa do que lhe permitiria qualquer reacção, o outro agarra-o pelos ombros e beija-o na boca.
O súbito fluxo de adrenalina que lhe sobe pelo corpo deixa-o paralisado. Sente aqueles lábios quentes contra os seus e uma vertigem no cérebro.
O outro afasta-se mas mantém as mãos nos ombros de Carlos. Olham-se. Não dizem nada. Depois o olhar do outro diz que vem aí outro beijo. E Carlos deixa que o beijo aconteça. E o beijo acontece, agora com língua, saliva e mais calor. Barbas roçando--se mal feitas, raspando na pele de um beijo que se alarga e se estende de repente a um abraço. Quando os ventres se tocam Carlos nota que ambos estão feitos. Repara também num cheiro doce de perfume (Kenzo?), na textura de flanela da camisa dele, na firmeza do braço que agora agarra. Sente-se arrastado para uma das retretes, a porta fecha-se ao seu lado e estão os 2 ali metidos, entesados. A olhar um para o outro. A respirar frente a frente.
Depois uma das bocas baixa-se até uma barguilha que se abre e Carlos só então pensa: porra, o que é isto?!

Feliz - 4

Há 5 anos que Carlos masturba Paulo da mesma maneira. Enquanto é masturbado, Paulo gosta que Carlos esteja por trás dele (deitado, sentado ou de pé, tanto faz) e lhe morda e beije o pescoço ou a orelha e lhe coloque o sexo rígido entre as nádegas, sem o penetrar. Isso foi tentado várias vezes sem sucesso nos primeiros anos e Paulo acabou por encerrar o assunto dizendo que decididamente não tinha sido feito para ser paneleiro. Riram-se e fechou-se o assunto. Paulo encerrou o assunto.
Carlos entesa-se seja com o que for e vem-se de qualquer maneira. Paulo cede às suas fantasias (é o que lhes chama) desde que o final seja sempre o mesmo: Carlos atrás da sua orelha, mão a trabalhar-lhe o sexo.
Carlos dá por si a pensar que Paulo e Carlitos têm muito em comum. Carlitos também brinca seja ao que for desde que o final seja sempre o mesmo. Desde que acabe como Rei.
Carlos dá por si desinteressado durante o sexo com cada vez mais frequência.
No 1º ano nenhum dos 2 reparava sequer no que fazia. O sexo era um banquete de luxúria canibal. No 2º tudo se definira, posições, estretores, diálogo. Ao 5º ano de vida comum o sexo está plenamente integrado na rotina do casal e acontece geralmente às Sextas à noite ou aos Sábados de manhã.

Feliz - 3

A fruta preferida de Carlitos é a maçã. O Pantufa tem de aturar frequentemente sessões de tiro ao alvo com uma maçã na cabeça nas quais Guilherme Teles (encarnado alternativamente por Carlos ou Carlitos) demonstra a sua pontaria aos assustados hermafroditas que depois o hão-de eleger como Rei, poupando-lhe a vida e tornando-se seus leais súbditos e guerreiros.
Na manhã de uma Sexta-feira algures em Maio, Paulo lembra Carlos que ele tem de comprar maçãs. Carlos faz a lista das compras e queixa-se de que não vai conseguir carregar tudo na Vespa com que costuma andar na cidade. Paulo retoma a velha conversa de que deviam comprar um segundo carro. Carlos retoma a velha desculpa de que nunca se consegue arranjar lugar para estacionar em Lisboa e que além disso a mota lhe permite andar mais depressa pelo meio dos engarrafamentos. Já tiveram esta conversa muitas vezes e nenhum insiste nos argumentos. Acertam horários para o dia.
Paulo vai para o escritório e depois vai visitar 3 clientes: um restaurante em Cascais, uma loja num centro comercial e um tipo rico que quer decorar o apartamento novo do filho. Carlos vai ficar em casa de manhã a trabalhar num storyboard que está a fazer para uma agência de publicidade e que vai entregar durante a tarde. Depois vai às compras ao supermercado e fazer o jantar para os 4 porque Cláudia e Carlitos chegam às 7.
Beijam-se, dizem que se amam. Paulo sai, Carlos fecha a porta.
Carlos trabalha a manhã toda, come 1 iogurte a meio da manhã e 1 pacote inteiro de bolachas empurrado com sumo de laranja ao princípio da tarde enquanto continua a trabalhar. Às 3, sai de casa, atravessa a cidade de mota e entrega o trabalho na agência. Telefona a Paulo que está no centro comercial. Trocam comentários sobre um gajo giro da agência que Paulo conheceu uma vez numa festa a que foram os 2. Brincam. Dizem tolices. Fazem vozes infantis. Tratam-se por Coisinha Fofa e Pudinzinho. Dizem que se amam. Despedem-se.
Carlos volta a montar-se na mota, atravessa a cidade e pára frente a um supermercado. Faz as compras. Regressa à mota carregado com sacos. Repara que encostado a uma paragem de autocarro, ao lado da mota, está um gajo muito giro. Tira uma mochila debaixo do assento da vespa e começa a pôr as compras lá dentro. As maçãs ficam por cima e uma delas cai e rola até aos pés do gajo giro. O gajo giro apanha a maçã do chão e olha para Carlos. Carlos repara que ele tem olhos claros, cabelos negros e um ar perigoso e estupidificantemente sexy de cigano.
O gajo giro olha para ele. Fixa o olhar nele. Carlos não sabe o que fazer. Sente embaraço, medo e atração.
O gajo giro continua a olhar para ele. Sorri. Leva a maçã aos lábios e morde-a enquanto continua a olhar impudicamente para ele. Carlos não diz nada. Sente-se como se estivesse dentro de um anúncio de desodorizante masculino. Entra em pânico. Acaba de fechar a mochila, põe o capacete, monta-se na mota e acelera em direcção a casa.
Em casa arruma a mochila e as compras, dobra os sacos plásticos, lava a loiça que sujou durante o dia, varre a cozinha, aspira a sala e os quartos. Vai para a casa de banho onde espreme borbulhas em frente ao espelho. Depois baixa as calças e bate uma enquanto pensa no tipo da paragem do autocarro.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Feliz - 2

Os quartos de hóspedes da casa de Carlos e Paulo são frequentemente ocupados por Cláudia, a irmã de Paulo, e o seu filho de 5 anos, o Carlitos.
O quarto onde Carlitos dorme está cheio de briquedos que os tios lhe compram. Carlitos é uma boa desculpa para comprar legos (que Carlos adora) e peluches (a que Paulo não consegue resistir).
Cláudia tem 30 anos e ficou viúva quando Carlitos tinha apenas 2. Acidente de automóvel. Carlos e Paulo foram então promovidos a tios a tempo inteiro, apesar de Cláudia morar nas Caldas da Rainha. As visitas aos tios são frequentes e vice-versa.
Paulo está sempre a tentar convencer a irmã a mudar-se para Lisboa. Cláudia responde que quer que o filho cresça numa cidade pequena. No entanto queixa-se de que nas Caldas toda a gente vive no século 19. Visitas ao infantário e conversas com outras mães e educadoras de infância deixam-na sempre com os nervos em pé e com assunto para 2 meses de críticas ao sistema de ensino e métodos pedagógicos em Portugal.
Carlitos beneficia apesar de tudo da febre educativa e didática da mãe e dos tios. Com apenas 5 anos já foi à ópera, 10 vezes ao teatro, incontáveis vezes ao cinema e viu «O Rei Leão» no vídeo 22 vezes (Carlos contou). Paulo resolveu arranjar um cartão de crédito do Jardim Zoológico porque chegou à conclusão que ia poupar dinheiro.
A palavra preferida de Carlitos no momento é ”Ornitorrinco”. O animal preferido é o koala, mas também gosta dos pinguins, das focas e das lontras. Adora índios e cowboys.
Carlos e Carlitos foram feitos um para o outro. Enquanto Paulo se cansa facilmente das brincadeiras e Cláudia não aguenta mais o esforço de viver como mãe solteira de um filho hiperactivo, Carlos e Carlitos brincam de igual para igual.
A brincadeira favorita de Carlitos é com um action-man que se transformou num indío chamado Guilherme Teles que tem como melhor amigo um koala de peluche chamado Pantufa e juntos vivem muitas aventuras no país dos hermafroditas.
Cláudia teve problemas com as educadoras do infantário quando o fillho ensinou os colegas a dizer ”hermafrodita”. O problema solucionou-se quando se resolveu deixar 23 criancinhas crescer na ilusão de que hermafrodita significa canibal. Claudia desculpou-se com a costumeira frase ”não sei onde é que ele ouve estas coisas”. A verdade é que sabe perfeitamente onde é que ele as ouve, mas não se rala minimamente.
Carlitos por seu lado, apesar de brincar mais com Carlos do que com Paulo, resolveu que gosta igual dos 2 porque Paulo tem um amigo que conhece 1 hermafrodita de verdade.
Carlitos espera que um dia os tios o levem a viajar à ilha do polo sul onde vivem os ornitorrincos, os koalas e os hermafroditas. Só não lhe agrada pensar que antes vai ter de passar 1 mês a comer alho porque isso é a única coisa que vai impedir os hermafroditas de o cozerem num caldeirão. Os hermafroditas (que por esta altura já são canibais-vampiros) não gostam de alho, tal como Carlitos também não gosta de azeitonas, couves, espargos, hamburgers e coca-cola. O seu prato preferido é Pato à Pequim no restaurante do senhor Li, que fica na esquina da rua onde Carlos e Paulo moram. Paulo, que detestava comida chinesa, foi obrigado a converter-se. ”…mas antes isto que hamburguers”, diz. Além disso, o restaurante do senhor Li é dos poucos em Lisboa onde os empregados sorriem o tempo inteiro, e isso agrada-lhe, mesmo que seja só um hábito chinês.
Carlitos decidiu não gostar de hamburguers e coca-cola porque são a comida favorita dos hermafroditas. Foi o tio Paulo quem lhe contou e o tio Paulo é sem dúvida a autoridade mundial na antropologia cultural dos hermafroditas.

Feliz- 1

Carlos e Paulo são 1 casal.
Carlos tem 29 anos, trabalha como ilustrador freelancer para agências de publicidade. Paulo tem 35, é arquitecto de interiores e tem o seu próprio atelier com 4 empregados. Moram em Lisboa, no bairro do Princípe Real num apartamento que compraram e remodelaram há 3 anos. Vivem juntos há 5.
Conheceram-se numa zona de engate de Lisboa. Ambos têm vergonha de falar do assunto e por isso concordaram numa versão oficial em que se encontram num bar do Bairro Alto. A verdade é que se encontraram uma noite na Cidade Universitária, Carlos na sua mota, Paulo no seu carro. Rondaram a zona várias vezes, nervosos, e repararam um no outro.
Carlos vinha pela primeira vez, a ver como era. Tinha ouvido falar da zona e do esquema de engate. Tinha 23 anos na altura e a virgindade recém perdida com o amigo de uma prima.
Paulo tinha acabado uma relação havia 1 ano, durante o qual levara uma vida de eremita concentrando-se no trabalho e libertando a pressão de vez em quando com 1 filme porno que o ex tinha deixado lá em casa. Mas naquela noite o video tinha-se avariado e ele resolvera sair. Vinha sem grande esperança, apenas para ver se arranjava alguém com quem bater uma.
Cruzaram-se na rua, um na mota, o outro no carro, ainda assim os olhares tocando-se através de vidro, capacete e velocidade. Depois, mais uma volta ao quarteirão, a mesma cena que se repete, outra volta, o mesmo olhar, câmara lenta.
Depois Paulo estaciona o carro.
Depois Carlos pára ao lado.
Paulo desce o vidro da janela.
Carlos levanta o capacete.
Olham-se. Confirmam o olhar. Carlos entra no carro.
Trocam uma palavras. Estão nervosos. Cada um acaba por relaxar face ao nervosismo do outro.
Começam a masturbar-se mutuamente, mas alguém passa na rua e distrai-os. Resolvem falar. Falam muito. Descobrem interesses em comum. Acham o outro giro. Resolvem ir para um bar conversar.
Vão para um bar. Conversam. Gostam um do outro. Vão para casa de Paulo. Fodem. Dormem. Acordam. Amam-se.
Passado 1 mês Carlos muda-se do seu quarto alugado de estudante para o apartamento de Paulo em Alcântara.
Passados 3 meses Paulo apresenta Carlos à família.
Passados 6 meses Carlos conta à família que é homossexual.
Passado 1 ano abrem uma conta conjunta no banco.
Passados 2 anos compram um apartamento no Principe Real.
As razões para a compra do novo apartamento são: a fabulosa vista para o Tejo, 1 escritório para Carlos, 2 quartos para hóspedes.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

13 dias do ano

Fiz as contas.
Não foram muitas as vezes que te vi.
Em que estivemos juntos.
E que importa isso?
Não sei.
Mas sinto a tua falta.

Olhava para o tecto, como tantas vezes faço quando, ainda antes de dormir ou levantar, preciso de me pôr em ordem, e pus-me a contar. Foram 13.

Parece de alguma forma um número simbólico, mas todos os números pequenos compensam a magreza com uma barriga cheia de significados. Insignificantes.

Não é aqui na cama que sinto a tua falta. Pelo menos não quando me deito. Uma vez dormimos juntos e, como certamente te lembrarás, descobrimos que os nossos sonos não se uniam como nós. Os corpos sim. Decididamente feitos um para o outro, a encaixarem como Lego. Mas não no sono. Nem nos sonhos, provavelmente. Que raio foste tu fazer para a Índia só Deus sabe, e a mim não me interessa.

Tal como não me interessou saber quem eras. Porque lias Camus. Porque deixavas que as tuas roupas se empilhassem nas cadeiras sem se distinguir já o sujo do limpo. Porque enfileiravas na beira da banheira um exército de embalagens de litro de gel de banho. Não. Nunca quis saber quem era essa pessoa.

Talvez porque, logo naquela primeira vez, assim que nos despimos e os nossos corpos se encontraram, eu tenha ficado a saber tudo o que importava saber sobre ti. A tua generosidade. E a bondade. Estava na tua pele, nos teus gestos, e era isso que tornava difícil largar-te o corpo, largar-te a boca, parar os beijos. Eu, tu. Nós. Atados um ao outro, a prolongar aquilo, a troca de fôlegos, a mistura das peles. Até a tensa contenção se quebrar e termos mesmo de nos derramar por cima um do outro. Até irmos rir para o duche e atirar água para os corpos. Gargarejar. E dar bom uso àqueles litros de gel de banho que o outro desconhecido tu comprava em mercearias de esquina, lojas de desconto. Exotic Sunshine. Eternal Spring. Brisa del Mar. Manzanas Verdes. Nomes mais teus do que o teu, de que nem me lembraria não fosse tê-lo escrito num pedacinho de papel, por cima do teu numero de telefone.

Ainda te tentei ligar depois daquela última vez em que me disseste que ias viver para a Índia. Bizarro. Ninguém se muda para a Índia. E no entanto, esse tipo que eras e que nunca me interessou conhecer, foi para lá de certeza porque nunca mais atendeste o telefone.
Azar o meu.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Jesus e eu

Tenho de confessar: o que me atraía nele era o facto de se parecer com Jesus. Não o Jesus moral, da catequese e dos domingos, que ele era um safado, graças a Deus. Parecia-se sim com o Jesus visual, aquele de barba e cabelos longos, que costuma aparecer nas ilustrações das revistas das Testemunhas de Jeová. Principalmente depois de sair do banho e se pentear. Com aquele ar de bom menino com que às vezes se punha, parecia mesmo acabado de baptizar. Era divino.

Conheci-o numa festa do Avante onde me apareceu assim como que Jesus-incógnito-na-Terra, a tentar passar despercebido entre um grupo de hippies a fumar ganzas. Mas a barba e o cabelo eram inconfundíveis. As sandálias também.

Meti conversa naquela de, olha Jesus, deixa ver se quer foder. Queria. E nem foi mau.

Ele era talvez magro demais para o meu gosto, e tipos circuncisados não são bem a minha onda, mas enfim, faz parte do conjunto. Jesus é Jesus, e ninguém é perfeito, de que é que eu estava à espera?

Depois do ofício ainda falámos. Era menos burro do que parecia. O efeito das ganzas passava-lhe depressa e a conversa quase raiou o inteligente.

Voltámos a encontrar-nos e voltou a correr bem. Foi então que começámos a sair e acabei por o apresentar a todos os meus amigos.

É giro levar Jesus a festas. Fazem-se entradas sensacionais. É quase mais eficaz que levar um modelo ou um actor famoso das novelas. Os jantares ganham um ar de última ceia. E no fundo, no fundo, não há quem não nutra uma certa simpatia por Jesus. Eu até o teria levado a conhecer a minha mãe, não fosse ela já estar a confraternizar com o verdadeiro Jesus, os anjos, os santos, os apóstolos e essa fauna toda que saltita nas nuvens do reino celeste. Tenho a certeza que com um tipo daqueles ela não se sentiria envergonhada por ter um filho uranista e, se calhar, até daria uns chás lá em casa, convidando as amigas para verem o belo partido que ele arranjara…

É que era mesmo fascinante. Às vezes punha-me a olhar para ele enquanto dormia, só para que, quando abrisse os olhos, eu pudesse ter aquela sensação estonteantemente 3D dos quadros piroso-holográficos de Jesus que se vendem nas feiras. Sempre delirei com aquele piscar de olhos enigmático que nos leva a abanar a cabeça como tontinhos.
…e era o que ele me dizia, quando abria os olhos. És mesmo tontinho. E eu dizia, és mesmo bonito, para disfarçar.

No geral, era um tipo porreiro e, se calhar, até teria sido capaz de o amar mas, ao fim de algum tempo, zangámo-nos por qualquer coisa e eu aproveitei para acabar com ele. É que eu não via grande futuro numa relação com alguém que, ao fim do dia, precisava sempre de lavar os pés. E nunca o fazia.

Amanhã

Naqueles dias bastava que ele viesse, metido pelos campos, descalço até, às vezes. Ficávamos juntos pela tarde, no quintal, a ver lama a secar, erva a crescer, aborrecidos de morte mas, ainda assim, felizes por o sol, ao pôr--se nos encontrar juntos, sentados à porta da cozinha, cansados de jogos. Ou então em dias de selvajaria, com a noite a dar por nós entre as silvas, na caça aos pássaros ou aos coelhos. Eu levava as manhãs contando horas, desde que a primeira luz fria me acordava até as tarefas e lições suspirarem. O dia arrastadamente longo por te saber a vir. Depois, tentava receber-te com cheiros de casa e boas vindas. Pão, bolos, sorvetes e o que mais se pudesse conjurar para garantir que amanhã voltarias, talvez até para me ver.

Hoje voltei a esta cidade (agora é cidade) e a esta casa e sentei-me nesta mesma cadeira de onde me punha a oscultar os canaviais do rio além e o baldio que tão conhecido era dos teus pés. Havia uma leveza nesses dias. Mas mesmo que agora só se sinta a escuridão que se entranhou nesta casa e que custa a sair dos armários da cozinha, do tapete da sala, há ainda nesta janela uma memória do sol da tarde, da tua corrida por entre aquelas ervas que continuam a crescer ali, nas traseiras. Talvez haja até um rasto dos meus sorrisos por aqui, esquecidos numa gaveta, arrumados a um canto, perdidos nesta desgraça que se foi acumulando.

Amanhã, quando voltar a acordar aqui, pela primeira vez em anos, hei-de auscultar no silêncio da manhã fria, a banheira, o lavatório, em busca desse suspiro, do sustido respirar, que era o esperar por ti. O dia longo que terminava em ti. E mesmo antes de começar a limpar, a tirar a humidade, o esquecimento, a este móveis, hei-de procurar no pequeno livro, abeirado ao telefone, o teu número. Talvez ainda exista para te encontrar. Não imagino já a tua voz. Decerto já mudou. Não te imagino de todo. Não serás o mesmo, mas, mesmo assim, quero chamar-te, como se fosse possível fazer-te correr outra vez pelos campos, descalço, para me vires ver. Amanhã.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Dois Amantes

Entrou-me a meio da vida, suavemente. Fausto.

De boas famílias, educado. Quando se sentava à mesa de um restaurante, saiam-lhe os pedidos com voz funda e articulada, como se tivesse sido já tinta pela idade. Tinha qualquer coisa de solene. O mundo pesava-lhe nos ombros por suportar, com pudor calejado, olhares curiosos. Na verdade, só há pouco deixara a adolescência mas vinha despido de pêlos, o corpo marcado a seda pela crueldade do cobalto. Não lhe chamaria adulto, simplesmente portava-se com a calma de quem toma a morte por certa e não se apressa.

Escorregou como leite para os meus lençóis. No branco era branco. Nádegas lisas e alvas como ovos, escroto limpo e um órgão quase triste mas que se erguia com o mesmo porte majestoso que se via nele, Fausto, quando a gente na rua lhe marcava a calvice absoluta, a elegância simples de ser só jovem pele.

Por mais que o quisesse manter protegido no meu abraço, foi-se perdendo de mim em jogos de família, cenas de hospital.
O acaso seguinte trouxe o seu oposto. Carlos era médico e, quando se desembrulhava de roupas, era oferta de selva onde Fausto fora deserto. O pénis erguia-se-lhe com a doce curva de um coqueiro saindo do mato, nascente secreta do veludo que lhe cobria exaustivamente o corpo e só lhe dava descanso algures a meio das costas, tornando raras as plantas dos pés, as palmas das mãos. Mergulhado na água, o seu corpo era banco de coral, os cabelos seguindo o sabor da maré. Faziam desenhos tribais depois, quando saía para o sol, numa crescente rebeldia contra o sal, secos ao vento.

Onde Fausto deslizava, Carlos raspava, a barba agreste marcando-me a pele, ferindo-me o beijo. Corpo mistério intenso, viciante. Foi uma separação difícil, ruidosa, doída. Veludo que se tornara velcro que se tornara lixa.

Dois amantes. E eu, quando olho para mim, vejo que continuo a ter as cicatrizes da selva, as miragens e alucinações do deserto, impressas no ser, cantando como sereias quando me apanham sozinho numa noite qualquer, ao acaso, nesta cidade.